Há momentos nos quais o governo
da presidente Dilma Rousseff parece padecer de uma esquizofrenia crônica. Se
fosse uma pessoa física, não jurídica, poderia ser estudado em congressos
internacionais de psiquiatria como um caso único de esquizofrenia econômica.
Embora, academicamente, a esquizofrenia tenha definições variadas e seja um
assunto controverso, didaticamente usa-se o termo para fazer menções à
manifestação de múltiplas personalidades. Com base nessa definição, o governo
Dilma Rousseff pode ser considerado esquizofrênico em matéria de política
econômica: nele, convivem um Dr. Jekyll pró-mercado e um Mr. Hyde anti-mercado.
Por definição, como as personagens de Stevenson, são incompatíveis – ou, ao
menos, eram; recentemente, descobriram que podem compartilhar um objetivo comum
na área de saúde: o governo vai passar subsidiar planos de saúde privados ao
mesmo tempo que mantém o Sistema Único de Saúde (SUS) atendendo a todos –
inclusive, aqueles que tiveram acesso aos planos de saúde privados por meio da
subvenção estatal.
Os sintomas da esquizofrenia no
governo Dilma Rousseff são muitos. Há tentativas de não chamar privatização as
privatizações feitas e a fazer, como se Mr. Hyde fosse ser aplacado pela
simples mudança de nomenclatura – Dr. Jekyll, mais contido, não parece ter se
incomodado muito, como mostra o interesse do setor privado nas privatizações
que não podem revelar seus nomes. O ápice dessa confusão
estatização-privatização talvez tenha sido quando o governo Dilma Rousseff se
viu obrigado a dobrar, para as futuras privatizações que não podem ser chamadas
assim, as taxas internas de retorno (IRR, na sigla em inglês) dos projetos,
chegando ao patamar de 15% ao ano de rentabilidade – exatamente o retorno que
era oferecido pela administração do PSDB e que o PT sempre criticou. Será, para
dizer o mínimo, curioso ver o malabarismo verbal que Dr. Jekyll terá de fazer
para aplacar a fúria de Mr. Hyde nos próximos meses.
Outro exemplo basilar de
esquizofrenia foi a tentativa de drenar o atoleiro logístico chamado Brasil. Em
um mundo globalizado (e, aqui, pouca importa se gostamos ou não da globalização
– ela não só está aí como determina que países terão quais partes dos processos
produtivos com base em alguns fatores, dentre os quais a capacidade logística:
a nós, nos cabe escolher entre agir maduramente e aproveitar as oportunidades
ou agir infantilmente e ficar sonhando com outros mundos),ou o Brasil se torna
luminoso na logística, para usar a definição de Milton Campos, ou estará
condenado à opacidade dos atrasados. Um dos nossos maiores gargalos é o setor
portuário.
Desnecessário replicar aqui
números absurdos de nossa produtividade portuária, especialmente se comparados
com os melhores portos do mundo (Roterdã, Dubai, Singapura, Xangai etc.), que o
governo conhece bem, como indica a Medida Provisória 595. Se for aprovada como
foi prevista, quebrará a espinha dorsal de privilégios e ineficiências que
beneficiam pouquíssimos e prejudicam todos. O Médico realizaria, portanto, um
bom trabalho. Mas o Monstro parece não querer deixar: na própria base de apoio
do governo, há pessoas jogando pela manutenção de privilégios e prejuízos
associados ao modelo atual.
Não obstante isso, Médico e
Monstro fizeram as pazes na última semana: os dois se juntaram para criar um
sistema bicéfalo na saúde brasileira. A ideia é o governo subsidiar planos de
saúde para a população de baixa renda, uma espécie de Obamacare brasileiro.
Mesmo nos Estados Unidos, onde a saúde privada é mais importante que a pública,
tal medida é extremamente controversa. Como poderia Mr. Hyde, que é totalmente
a favor de uma saúde pública gratuita, apoiar tal ideia? Não deveria ele ser
contrário a uma estrutura bicéfala, na qual os planos de saúde privados seriam
subsidiados pelo mesmo governo que mantém a saúde pública? Não deveria ele
brigar pelo aprimoramento do SUS, de modo que apenas quem quisesse – e,
obviamente, pudesse – arcar com uma saúde privada o fizesse, pagando o preço
real disso? Não deveria ele lutar para impedir que clientes de plano de saúde
fossem atendidos pelo SUS sem reembolsar o sistema público? E Dr. Jekyll não
deveria ser contrário à manutenção de uma estrutura bicéfala, na qual as arcas
públicas bancam a saúde pública e subsidiam a saúde privada? Não deveria ele
apoiar a existência de um sistema de saúde basicamente privado como o
americano, no qual os cidadãos compram seguros/planos de saúde e o máximo que o
governo pode fazer é subvencionar seguros/planos para aqueles que não podem
arcar com o mínimo? Não deveria ser ele o primeiro a dizer que a coexistência
de um sistema público, cujo uso por parte do sistema privado não é reembolsado
na prática, distorce os preços e cria uma ilusão de acessibilidade?
Quando Médico e Monstro deixam de
ter uma relação esquizofrênica e passam a ter uma relação colaborativa, visando
o mesmo objetivo, algo está muito errado: nem Robert Louis Stevenson previu tal
comportamento em seu livro nem a medicina tem registros de cura por esse
motivo. No final, o que Dr. Jekyll e Mr. Hyde estão propondo que o Brasil tenha
é um sistema de saúde absolutamente esquizofrênico: os planos de saúde privados
são artificialmente baratos, tornando-os factíveis de serem subvencionados com
verbas públicas para serem acessíveis às pessoas de baixa renda, que continuam
a contar com uma rede pública de saúde caríssima, personalizada pelo SUS, que
vai continuar atendendo não apenas quem não possui planos de saúde privados,
mas também titulares desses planos, que, ao serem encaminhados pelos planos
privados para utilizar a rede pública, não a reembolsam, empurrando os custos
de atendimento para o SUS e mantendo os custos dos planos de saúde privados
artificialmente baratos, tornando-os factíveis de serem subvencionados com
verbas públicas para serem acessíveis às pessoas de baixa renda etc. O projeto
que resulta da colaboração entre o Médico e o Montro é um moto-contínuo
esquizofrênico para a saúde brasileira.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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